15 setembro 2017

A Europa, a ideologia, o Sr. Juncker, e outros que tais

Há dois dias, o Sr. Juncker foi ao Parlamento Europeu pronunciar o seu discurso sobre o Estado da União. No aproximar do fim do seu mandato, o Presidente entendeu dar a esse discurso o formato de testamento político, com o mote de uma nova formatação politica da Europa. Têm sido variados os comentários em torno do seu conteúdo. Um número significativo deles tende a sublinhar a importância da nova visão de Juncker para a Europa. Outros, pelo contrário, têm posto em causa a novidade da visão, interrogando-se sobre se, no momento da partilha da herança, tem alguma valia o quinhão que a cada um vai caber.
Embora existam outros, sublinho como componentes importantes desse discurso os seguintes pontos:
1.     A fusão dos presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu numa única entidade;
2.     A criação de um Ministro das Finanças da União, com a categoria de Vice-Presidente, agregando os postos de Comissário dos Assuntos Económicos e de presidente do Eurogrupo;
3.     A adesão de todos os membros da União ao euro.
Muitos entendem invocar que são propostas concretas, realistas e despidas de ideologia, justificando que é por causa dela que surgem os bloqueamentos à evolução, do progresso e da transformação das instituições (chamam-lhe transformações estruturais, transformações que se conformem com a estrutura por eles desejada). Qualquer destas propostas pode valer só por si, mas não vale enquanto parte de ideia política fundada para uma nova Europa, em direção à qual todos reconhecem ser necessário avançar. Temos propostas, mas não temos uma ideia fundadora de uma nova Europa. Ora, uma ideia fundadora não pode surgir independentemente de uma ideologia, ou de uma inspiração em ideologias.
Andam por maus caminhos todos os que invocam a força das realidades concretas para derrubarem, a ou as ideologias. A cegueira mental que revelam impede-os de ver que por trás do que estão a afirmar está, também e antes de tudo, uma ideologia, em geral a do livre mercado. Também a Europa pode vir a ser derrubada se, na sequência do rasto deixado pelo Sr. Barroso, se quiserem implementar formatações que dão corpo à afirmação da Europa liberal.
Voltemos aos pontos antes sublinhados. Todos eles são enunciados sem estarem ancorados num suporte de valores. Como ainda hoje o primeiro-ministro, António Costa sublinhou, na sua lição no Colégio de Bruges: a reconstrução tem que começar “pelos valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, sem cedências à demagogia ou ao relativismo cultural". A referência aos valores, que são ideologia, nunca pode ser entendida como mais uma deriva enfastiante. Com isso, só se sentem incomodados os militantes da necessidade de um futuro sem valores.
Qualquer das 3 propostas merece ser analisada a esta luz. Relativamente à agregação dos presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu numa única entidade, embora a proposta possa ser vestida com as roupagens da eficácia das decisões, a primeira questão que se coloca é a seguinte: um presidente mais poderoso para prosseguir que projeto? Depois, não podemos esquecer que o Conselho é, de alguma forma, uma projeção dos governos nacionais. Ao dar-lhe um presidente vindo de fora, não é mais uma forma de fazer outra agressão à soberania dos Estados, sem se saber o que se recebe em troca?
A criação de um ministro das Finanças da União, com a categoria de Vice-Presidente, fundindo os postos de Comissário dos Assuntos Económicos e de presidente do Eurogrupo é uma forma explícita de formalizar, ao nível do colégio de comissários, o papel que temos vindo a conhecer nos últimos anos protagonizado pelo ministro das finanças alemão, Sr. Wolfgang Schäuble.
Há, contudo, uma outra questão mais fundamental. O colégio dos comissários, hoje com 27 membros, encontra-se estruturado por áreas que foram criadas nos pressupostos, da sua relevância para a gestão do projeto da União e da existência de uma relação de interdependência, sistémica, entre elas. Assim, ou esta partição está errada ou, então, não se pode privilegiar uma área em relação a outras.
Ao destacar o papel do Ministro das Finanças da União em relação aos outros Comissários, o que se está a promover é a ideia de que há áreas mais centrais de que outras e que consequentemente, as decisões tomadas no seu seio devem subordinar as que venham a ser tomadas em outras áreas. Daí que na última década se tenham arvorado como valores universais os dos equilíbrios financeiros e orçamentais, em desprimor de outros a que deveria ser atribuída igual valia: equilíbrios sociais, equilíbrios no emprego, equilíbrio na repartição de rendimentos, equilíbrios na investigação e progresso tecnológico, equilíbrios ambientais, etc. Esvaiu-se a visão sistémica da gestão da União.
O último ponto é o da adesão de todos os membros da União ao euro. Percebe-se a intenção, mas não se percebe a metodologia. Percebe-se a intenção, porque o caminho para a existência de uma verdadeira União, união política, não é compreensível na ausência de uma moeda comum, uma moeda comum para todos os membros. Mas existência de uma moeda comum tem como pressuposto que a estrutura económica e financeira dos que a ela aderem é equivalente, estando eliminados os mecanismos de dominação de umas economias em relação a outras.
Na ausência da verificação deste pressuposto, a existência da moeda única só é tolerável se os países mais fortes, tendo em conta os benefícios que esperam poder vir a retirar no futuro, estiverem dispostos a assumir parte dos custos exigidos pela reconversão dos mais fracos. Como esta disponibilidade tem de ser limitada no tempo e como a soberania destes Estados exige que continuem a ser autónomos na definição das suas políticas económicas e sociais, estamos colocados perante um bloqueamento que, a mais curto ou médio prazo, acabará por destruir o projeto da moeda comum.
Mais uma vez, como acontece com frequência, o testamento encontra-se de tal modo armadilhado que, certamente, se esfumará com o seu autor.

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